quinta-feira, 2 de junho de 2016

Ensinamentos a Portas Fechadas

Por: Marco Seschi

Caso acompanhe a algum tempo meus textos,  já deve ter percebido que algumas facetas culturais chinesas são extremamente multifacetadas. Isto se deve a uma não uniformidade com que as diversas famílias que mantiveram vivas as tradições das artes marciais até os dias atuais. O termo “Portas Fechadas” é outro que possui diversas camadas de significado de acordo com a linhagem a qual é imprimida. Enquanto para algumas é uma questão de importância máxima, em outras recai sobre a insignificância.
A interpretação mais comum de aluno a “Portas Fechadas” é a de um professor que ensina todo o sistema, com todos os chamados segredos, para um ou poucos discípulos escolhidos a dedo. São estes os que irão perpetuar sua linhagem para as próximas gerações, imprimindo a tradição marcial por anos a fio. Embora seja tentadora, a noção de que este seja um comportamento comum e generalizado entre as famílias é errônea. Talvez com o advento no final do século 19 ou começo do 20 de contos cavalheirescos, a famosa Wuxia, tomou-se esta ideia de que todos os professores mantinham determinados pontos em segredo dos “alunos comuns”, realizando a transmissão completa apenas para poucos merecedores.

Muitos professores efetivamente seguem este modelo, talvez por ser algo perpetuado por gerações ou pelo simples fato de que adotaram um costume que acreditavam ser o correto. O fato é que a tradição se manteve e poucos são os que possuem acesso ao sistema completo. Interessante notar que esta é a maneira mais fácil de causar a extinção de uma arte marcial, porém deixemos este assunto para outro momento.
Outro costume comum, principalmente no sul da China, é utiliza o termo “Portas Fechadas” para alunos que adentram a família marcial após o professor ter se aposentado do ensino público de artes marciais. O que significa basicamente que é aceito em uma família de maneira exclusiva. Talvez esta interpretação tenha se tornado comum após a criação da Jing Wu e das escolas comerciais como conhecemos hoje. Uma variação pode ter existido com professores que lecionavam em ambientes abertos ou eram contratados privativamente. Porém como as tradições estão sempre em constante mutação, impossível saber exatamente como era tratado nos dias antigos. Temos que confiar em relatos que na grande maioria das vezes, por ser puramente de tradição oral, possuem muitas distorções sobre seu conteúdo original.
As últimas maneiras na qual um aluno é conhecido desta forma é através do segredo perante a comunidade ou a própria família. Esta razão possui uma conotação social muito forte, pois basicamente se refere a esconder de alguma esfera da sua sociedade o ensino para determinado indivíduo ou grupo. As razões podem ser inúmeras, desde a não aprovação da família marcial, algum tipo de limitação local sobre as artes marciais ou até algo mais grave. Não vou entrar no mérito da gravidade com que ocorreu, mas a Revolução Cultural Chinesa (1958-1960) foi um dos grandes motivos por esta prática se perpetuar. Não é incomum ouvir relatos de professores obrigados a ensinar na escuridão da noite para que não fossem descobertos pelo governo. Porém seja qual for a razão, o fato é que esta é uma prática ainda em voga atualmente.

No final, não existe uma definição simples do que é ser um aluno a “Portas Fechadas”. A grande variação cultural chinesa acaba por fornecer diversos cenários em que essa expressão pode ser aplicada. Alguns em maior ou menor intensidade, porém todos reais e sendo praticados em nossos tempos. Quando souber de alguma versão diferente da que conhece ou a mais comum, aproveite para descobrir um pouco mais sobre a cultura, história e costumes chineses. Além de se maravilhar com as possibilidades que isso abre dentro de sua família marcial e prática individual.

Sifu Moacyr Rother Neto, Wing Chun Family Rother

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